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Uma questão de escolha

ERVANARIA MÓVEL – EXPEDIÇÃO I

 

 

Substantivo feminino, a palavra "Ciência" pode ser definida como um conjunto de conhecimentos de natureza empírica, teórica e prática sobre as coisas do mundo e de fora dele. Esses conhecimentos são resultado das investigações e estudos desenvolvidos por uma comunidade global de pesquisadores a partir do uso do método científico, marcado pela ênfase à observação, explicação e predição de fenômenos reais do mundo através de experimentos. Na prática a Ciência Moderna parece ter deixado de lado partes importantes do sentido e da origem da prática científica. Com a Revolução científica, no século 16, deixa de estar atrelada ao campo da Filosofia para se apresentar como uma forma de conhecimento mais estruturado e de caráter mais objetivo. O experimento deu lugar a uma verdade que se julga absoluta. A curiosidade pela experiência, a tentativa, o inesperado e o mundo real parecem não ter mais espaço dentro das paredes de muitos laboratórios.

Caminhando pelo Cerrado Mineiro, Adão revela seu olhar sobre o mundo. "Quem vive com pouco, satisfeito, vive melhor do que o rico, com muito. O rico se satisfaz com dinheiro, mais dinheiro, mais dinheiro. Nós pobres não. Nós nos contentamos com pouco e não nos preocupamos com muito. Se eu vivo tranquilo com pouco, para que eu vou me preocupar com muito?". A pergunta é resultado do que esse raizeiro vê ao redor e a resposta tem impacto direto na nossa vida. "A doença vem da comida: da carne, do queijo, do leite, dos legumes e das verduras. Tudo é tratado com remédio, com veneno. Fazer o quê? Ninguém quer plantar. Todo mundo já quer pronto e bonito. Você vê uma batata grande, bonita. Aquilo é puro agrotóxico e você está cozinhando aquilo e comendo", continua. Na contramão da ciência estabelecida hoje, Adão e os demais raizeiros mineiros não entendem os elementos do mundo como unidades independentes e constantes. Eles são vistos no mundo interligados, interdependentes e multifacetados, como organismos vivos.

O projeto ERVANARIA MÓVEL – EXPEDIÇÃO I teve como ponto de partida o resgate dessa cultura tradicional e modo de olhar para as coisas do mundo dos raizeiros - pessoas que possuem conhecimento sobre as propriedades medicinais das plantas. Com auxílio do Departamento de Engenharia Aeroespacial da UFMG, Fernanda Rappa, Pierre Fonseca, Guilherme Cunha e Márcio Diegues desenvolveram o veículo Ervanaria Móvel, transformado-o em um laboratório/herbário/biblioteca móvel, e com ele seguiram em uma viagem de campo pelo Cerrado Mineiro. Em meio a discussões sobre biodiversidade e os limites da ciência, o carrinho agiu como catalizador, detonador, ativador de encontros, diálogos, percursos e processos realizados durante a viagem de encontro com esse patrimônio natural e também formador de uma identidade social, cultural, política e econômica que se dá a partir da experiência do/no mundo.

Como resultado, além de uma vasta documentação reunida pelos artistas, estão também as reflexões poéticas de cada um a partir da experiência vivida durante a viagem, fazendo a passagem da dimensão coletiva do projeto para a dimensão individual. Aqui, as questões levantadas a partir da convivência com os raizeiros e a biodiversidade do Cerrado Mineiro são pensadas em arte, por meio da arte, reconhecendo a potência da investigação artística como campo de conhecimento e reflexão. Linguagens tão diversas quanto desenhos, instalações e objetos, são como ferramentas de resgate, fortalecimento e reflexão dessa tradição. A relação entre os raizeiros e as plantas, por exemplo, é o motor de alguns trabalhos. Em outros, a observação da formação, funcionamento e manutenção desse micro, mas vasto, universo das plantas, que muitas vezes nos escapa e passa desapercebido, é motivo de investigação.

Individualmente e em conjunto, esses trabalhos nos chamam atenção para a potência política, artística, econômica, cultural e social dessa discussão, ao mesmo tempo em que borram os limites que delimitam cada um desses aspectos. Ao mesmo tempo, resgatam também aquilo que deveria ser sempre o ponto de partida da produção artística: a curiosidade da pesquisa, o interesse pelo inesperado, e a potência do olhar poético sobre as coisas que vemos e que não vemos. Nos colocar em dúvida diante daquilo que quer se apresentar como certeza - seja no campo da ciência, da política ou da arte - parece ser um importante ponto de interesse desse projeto. Aqui, a dúvida, ou a possibilidade de escolha, são ao mesmo tempo princípio ativo e ativador.

 

 

Fernanda Lopes

Novembro/2015

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