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Ensaio Crítico para a exposição "Como sobreviver a um naufrágio", 2020.
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1. A surpresa foi percebê-la cada vez menos minha, como se a canção de amor,
em seus versos de quase desespero, dissesse respeito, sobretudo, a mim. Há
pouco havia me comunicado com ele, sem sabê-lo um possível rival. Hesitante
me perguntava se havia problema em se desviar do plano inicial. Ingênuo,
respondi que não deveria inibir as suas intuições, elas é que me seriam preciosas.
Não é que não me desse conta da intimidade necessária para que houvesse a
condição de se ter intuições. Eu queria. Ao conhecê-lo, estavam juntos,
diariamente, há quase uma semana. Acredito que tenham sido as tardes que
passaram juntos. Era-me impossível ter estado antes, para mediar a aproximação
desde o início, no que havia me escrito o quão importante estavam sendo aqueles
momentos a sós. Ao encontrá-los, ele estava agachado, inclinado sobre ela,
isolado do mundo com os seus fones de ouvido. A minha reação, intimidado, foi
não querer interromper, evitar a inconveniência, aquilo que acontecia. Em
seguida me ocorreu que ele parecia a conhecer melhor, por isso a impressão de
que não estávamos mais tão próximos, tão exclusivamente simbióticos, como há
algumas semanas atrás. Por mais humilhante que fosse, ocorriam-me passagens
do Pequeno Príncipe, para imaginar a possibilidade dela ser mais dele do que
minha, muito embora a mesma, por ter sido, trevas, mais cativado do que eu.

 

2. Não é bem como a relação entre o mar e o casco do navio, é mais como a do
tatuador com a pele do outro, com a diferença de que partia de mim, a princípio,
o desejo de que os dois estivessem juntos. A sua superfície estava tomada de
pontinhos e traços, nas laterais, estavam mais numerosos, noutras, se
mostravam concentrados, passando a atmosfera de uma nuvem mais escura.
Seria um clichê dizer que estava irreconhecível, até porque a mais expressiva de
suas características, a alvura, estava ali, celebrada. Sim, esta era sua marca.
Acrescidos os riscos em nanquim se tornara mais albina do que nunca. Aquela
superfície quase nunca tocada pelo sol, constantemente retocada para não ter
falhas, nunca tinha sido tão notívaga, tão branca, como depois daqueles
encontros. Ela, que pela cor, vira o mar senão de noite, passava então a ser o mar.
Márcio lhe acrescentava dobras e quinas, além de a convencer de que mar, onda,
era o que tinha sempre sido. Não poderia competir com quem a convencia tão
habilmente. O que mais poderia temer?

 

3. O efeito da persuasão é que ela teve despertada a sua vontade secreta de
inundação. A vociferância tinha sido tão bem compreendida, que não ousava,
simplesmente, se irradiar de dentro para fora, continuava algo que começava do
lado de fora, para se aprofundar dentro. Márcio não só a despertara para ser
onda, num esforço de descoberta de identidade, como a surpreendia com a
inelutável verdade, de que ser alagamento, onda, mar bravio, seria também não
ser, só, e ao mesmo tempo, si mesma, num acidente de perda de personalidade. O
mais de si mesma seria se descobrir outra, um Oceano. Apenas assim é que
poderia levar à deriva. Se Márcio a acordava à capacidade de fazer submergir,
ora, eu mesmo naufragava ao perdê-la. Afinal, não se é possível ter o que é

infinitamente mais extenso e agitado. Se não podia mais ser representada, senão
pelas suas partes, acidentais, então não mais cabia em lugar nenhum.

 

4. O relacionamento por Márcio estabelecido, o vínculo de intimidade que o fez,
nela, acordar a capacidade de inundação, que a despertou de si própria e de mim,
o negativo, nanquim, libertador da positividade, pura, mar, colocou-me, e a tudo
mais, em estado de naufrágio. O desamparo é o naufrágio. Como tantos outros
náufragos, desamparados, demandei, impetuoso, o que havia nele, que não em
mim. Ambos carregávamos, para cima e para baixo, canetas nanquim. Se tinha
uma, talvez duas, ele trazia consigo dezenas delas, não só finas, mas de quase
todos os tamanhos de ponta. Se tínhamos cadernos, o meu abrigava não mais do
que rabiscos ilegíveis, e o dele, maior e solene, comportava diversos formatos de
caudas de peixes, uma plêiade de cavalos-marinho, mesmo aquele que remete
um pouco a uma planta, traços cartográficos, abissalidades, embarcações,
coladas à página, afundadas no vazio, toda sorte de vazio, o duplo do infindo
oceano, que agora estava inscrito em seu corpo, mais a aura de conter as
memórias de um náufrago vasculhador de analogias. Nisso havia o ponto que
pode ter servido à derradeira aproximação, aquilo que tínhamos em comum, mas
o perdimento se devia ao fato de que, comparado a ele, como recém afundado, eu
não tinha nada. A albina se permitira libertar, enquanto oceano, pelo efeito
sedutor da revisitação à deriva.

 

5. O naufrágio é causado por um furo? Aquele pelo qual a água entra para
desfazer, um tanto, a diferença entre o dentro e o fora da embarcação? Não, não,
o naufrágio começa na rememoração do acidente. É por isso que não há um
náufrago completo, só parcialmente naufragados, e vestígios de naufrágios. Isso
porque o verdadeiro afundado é o afogado, este, por razões óbvias, vazio de
desemparo. No fim, o que distingue os sobreviventes é o tempo empregado na
coleção de vínculos entre os artefatos e a memória. Eu suplicaria à brancura que
percebesse que, na verdade, todos inventávamos uma boa parte de nossos
naufrágios, ainda que não o fizéssemos como quiséssemos. Ela já não me
escutava, tão somente oscilava e começava a emanar uma densa nuvem de sal.
Um efeito ferruginoso sobre todas essas imagens que seriam arranhadas em
placas de metal, no confuso procedimento de revisitar o evento, aquele, em que,
por pouco, quase se afogaram, refazendo-o pelo preenchimento dos espaços
vazios e seus aliados. O movimento das ondas se manifestavam como uma alma,
um temperamento, marés, inaugurando as janelas de onde se avistavam, como
gravuras, embarcações outrora flutuantes. Ela passava a entender que sempre
fora a profundidade. A brancura, o albinismo, não, não só isso, mas a ação de
sofrimento sobre todos aqueles cascos de navio, ainda um pouco suspensos,
parcialmente flutuantes, esperando para desaparecer.

 

6. Não era mais minha. No máximo podia crer que a graça das minhas
lembranças, dos naufrágios aos quais sobrevivera, derivaria do efeito que havia
deixado, as imagens que, soberanamente, resolvera poupar. Márcio o sabia há
mais tempo, tão somente a seduzindo a deixar de ser transitiva, para exercer a
sua vocação intransitiva, deixando de ser parede, para ser disponibilidade, mar.
Esta libertação tornava sem sentido as minhas perguntas sobre por que ele e não
eu. Porque partiu dele o estado de nem ele e nem eu. Não era mais possível tê-la.

Se podia, apenas, percebê-la, aumentando, concedendo, que do naufrágio, então,
restassem suvenires aos necessitados, àqueles sem a sorte de um completo
afogamento. Indicações sobre como sobreviver um pouco mais.

 

7. O mais da pilastra desbotada seriam suas marcas e as conchas, os mariscos, a
corrosão; o mesmo para as embarcações, os cabelos anelados pela umidade, as
fotografias e as notas para ajudar na lembrança. A especialidade disso tudo
restaria vinculada ao fato de que nada sobrevive para sempre a um naufrágio.
Nem mesmo a adorável última fotografia, tantas vezes encontrada e perdida, da
criança tão bem vestida de marinheiro.
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Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política à UFF. Desde 2015 é
Curador da Galeria IBEU. Autor, dentre outros, de Fuga sobre o Branco [ ].

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